ORAÇÃO DAS CRIANÇAS AUTISTA
"Bem aventurados os que compreendem o meu estranho passo a caminhar.
Bem aventurados os que compreendem que ainda que meus olhos brilhem, minha mente é lenta.
Bem aventurados os que olham e não vêem a comida que eu deixo cair fora do prato.
Bem aventurados os que, com um sorriso nos lábios, me estimulam a tentar mais uma vez.
Bem aventurados os que nunca me lembram que hoje fiz a mesma pergunta duas vezes.
Bem aventurados os que compreendem que me é difícil converter em palavras os meus
pensamentos.
Bem aventurados os que me escutam, pois eu também tenho algo a dizer.
Bem aventurados os que sabem o que sente o meu coração, embora não o possa expressar.
Bem aventurados os que me amam como sou, tão somente como
sou, e não como eles gostariam que eu fosse."
Nos últimos anos, há um número crescente de crianças e adolescentes diagnosticados com autismo. O transtorno do espectro autista é uma síndrome comportamental, reconhecida como uma Disfunção Global do Desenvolvimento, que se manifesta já nos primeiros anos de vida, causada por diferentes influências genéticas, neurológicas e ambientais, e que altera essencialmente o comportamento, a comunicação e, consequentemente, as interações sociais das crianças. O termo autismo deriva do grego “autos”, que significa “voltar-se para si mesmo”. O psiquiatra austríaco Eugen Bleuler foi o primeiro a utilizar o termo, em 1911, quando analisava crianças com comportamentos atípicos.
Apesar de o autismo ter um número significativo de incidência, foi apenas em 1993 que a síndrome foi adicionada à Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). A demora na inclusão do autismo nesta lista se deve aos mistérios que ainda envolvem a questão. Atualmente, o diagnóstico continua sendo impreciso e nem mesmo um exame genético é capaz de assegurar com precisão a presença da síndrome. Dessa forma, como ainda não se podem afirmar geneticamente as causas do autismo, o diagnóstico se dá através da observação sistemática do paciente que geralmente apresenta sintomas como dificuldade de comunicação e de interação social, irritabilidade, além de comportamento repetitivo, obsessivo e ecolalia.
Como existe uma série de graus de autismo, a intensidade dos sintomas pode variar. Nesse sentido, cada pessoa é única. A criança no extremo do espectro tem seu comportamento bastante comprometido, enquanto aquela de grau leve pode ser brilhante, com diversas habilidades em diferentes áreas do conhecimento. Algumas crianças não falam e nem se comunicam, já outras se sobressaem em questões intelectuais. Sabe-se, no entanto, que uma criança pode evoluir no seu quadro se diagnosticada cedo e se submetida a tratamento adequado. O diagnóstico e tratamento precoces, a partir de um ano e meio de idade, são os ideais a serem alcançados em termos terapêuticos.
Famílias esgotadas e desestruturadas:
As crianças com autismo e outros transtornos de desenvolvimento já são uma realidade nas comunidades cristãs, seja com presença nos cultos ou nos espaços de espiritualidade infantil e adolescente. Seus pais e mães chegam à igreja, na maioria dos casos, apresentando um quadro preocupante, de stress, de crises pessoais e conjugais e de sintomas depressivos.
Ora, as famílias de crianças com autismo enfrentam, a bem dizer, dois grandes desafios:
1 - o de buscar um diagnóstico para o comportamento atípico do filho ou da filha, que só é concedido depois da criança ser analisada por inúmeros profissionais da área da saúde. Ela, então, é submetida a exames de sangue, neurológicos e genéticos. Muitos destes exames colocam as famílias em longas filas de espera, experimentadas como tempos angustiantes, já que elas anseiam por respostas. É um exaustivo trabalho investigativo para alcançar um diagnóstico não definitivo, na maioria das vezes, mas orientador para os futuros caminhos terapêuticos a serem adotados.
2 - uma vez passado esse processo, a criança e a sua família enfrentam uma segunda fase, não menos cansativa: a busca pelo tratamento. As dificuldades residem, sobretudo, na falta de profissionais preparados para lidar com o transtorno, especialmente quando buscam na rede pública, ou mesmo pela dificuldade de encontrar profissionais de determinadas áreas no Sistema único de Saúde (SUS). Além disso, muitas possibilidades terapêuticas não estão acessíveis no Brasil.
Não raro, as famílias esgotam seus recursos financeiros com profissionais que atendem apenas de forma particular; às vezes, as consultas e os tratamentos exigem longos deslocamentos entre cidades e inúmeras horas de cuidado, de estímulo e atenção em atividades dadas como “tema de casa”. E em muitos casos, um dos cônjuges ainda opta por sair do seu trabalho, abrir mão da carreira profissional para atender às necessidades do seu filho ou filha. Uma realidade de muitas renúncias, só suportadas com uma boa dose de amor. A consequência de tantos esforços já se conhece: esgotamento mental, emocional e físico, tanto nas famílias que cuidam de pessoas com deficiência, como também nas crianças que são submetidas a intensas e numerosas terapias.
Esse processo agrava-se pela forma como a sociedade trata a questão. Uma sociedade que valoriza a vida humana por aquilo que ela é capaz de produzir socialmente (culturalmente e economicamente), que institui padrões de beleza, de comportamento e valoriza a pessoa pelo que ela tem, impõem difíceis desafios aos pais e às mães. O sentimento que permanece, para muitos deles, é o de se sentirem “incapazes” diante do desafio que lhes foi posto. Assim, mesmo os menores sinais de evolução no tratamento terapêutico já servem para alimentar a esperança, vibra-se com as pequenas conquistas, com cada fase transposta, são como injeções de ânimo para continuarem investindo na educação e no cuidado de seus filhos, sonhando com sua inserção numa sociedade que pouco soube acolher.
Para outros pais e mães, no entanto, nos casos muito graves, sentem-se exercendo o próprio trabalho de Sísifo, mito que em contextos pós-modernos, é empregado para significar qualquer tarefa que envolva esforços longos, repetitivos, mas fadados ao fracasso - algo como um infinito ciclo de esforços que, além de não levarem a nada proveitoso quando pensados em termos de produtividade social, também são desprovidos de quaisquer opções de desistência ou de recusa em fazê-lo. E o fazem, não desistem, impulsionados não só por um senso de dever, mas principalmente, pelo amor paterno e materno, a única força capaz de motivá-los a continuarem, a lutarem, a persistirem.
Além disso, já são conhecidas as constantes lutas desses pais e mães por políticas públicas de amparo às crianças com autismo e suas famílias; as tentativas de articulação desses pais e mães em movimentos que visam combater o preconceito e levar informações à sociedade. Casos de exclusão do sistema escolar, em restaurantes, lojas e aviões são lugares comuns. A velha história ‘Ninguém veio à festa de aniversário do meu filho’ são queixas repetidas nos círculos de autismo. E, se você conhecer pais e mães de crianças com autismo, vai saber que a exclusão dessas crianças em diversos ambientes públicos ou mesmo em atividades extracurriculares de algumas escolas acontece regularmente. Ou seja, crianças com autismo são excluídas sistematicamente de suas comunidades. Mas isso tem um custo. A consequência é que muitas famílias não conseguem adaptar-se ao recebimento de um filho ou de uma filha com algum tipo de deficiência, nem redefinir seus papéis dentro da estrutura familiar, a fim de se ajustarem a um novo estilo de vida. Divórcios, depressão e desamparo marcam a realidade da vida delas. E são estas famílias, “quebradas” pela cansativa e injusta luta na vida e pela vida que estão chegando às nossas comunidades.
Jesus acolhe e visita. A igreja acolhe e visita:
A partir deste panorama, a igreja, seguindo o Ministério de Jesus (Jo 4) que recebeu e cuidou da vida humana (Lc 5, 7, 9, 10...), pode assumir um importante papel de acolhida e de cuidado. Ora, famílias que têm um filho ou uma filha com autismo, ou qualquer outro tipo de deficiência, além de experimentarem o preconceito e a rejeição como vimos, estão extenuadas das maratonas em busca de diagnóstico e de tratamento. Por isso, elas anseiam por espaços de acolhida, aceitação e vivência da espiritualidade. Os princípios bíblicos do cristianismo (Jo 13. 31-35) desafiam a Igreja a acolher estas famílias, a cuidar de suas “feridas” (Lc 10. 25-37), a ajudá-las a superar as experiências de preconceitos e a colocá-las em relação com o Deus da vida. Trata-se de uma questão cristã, já que somos chamados e chamadas a valorizar o ser humano, qualquer que seja a sua condição, pelo simples fato dela ter sido criada por Deus (Gn 1), por ser filho, filha do grande Pai (Lc 15), e não por sua aparência, pelos seus aspectos comportamentais ou pelo que ele será capaz de produzir.
E a Igreja pode ser acolhedora com gestos muito simples: ela pode se aproximar destas famílias e de seus filhos e suas filhas e os tratar com dignidade; ela pode recebê-los bem em seus templos, propiciando, especialmente às pessoas com deficiência, condições de mobilidade nos seus espaços físicos; pode instrumentalizar as lideranças que exercem trabalhos com crianças e adolescentes sobre o autismo; pode oferecer espaços e momentos de espiritualidade e educação religiosa; pode criar redes de apoio para que as famílias possam trocar experiências e se ajudarem mutuamente; ela pode recebê-los, não com um olhar condenatório, mas de misericórdia, buscando ouvir suas necessidades.
Da mesma forma, com os devidos cuidados, nada impede que as crianças com autismo participem das atividades desenvolvidas pela comunidade. Indubitavelmente, trabalhar com essas crianças é um desafio, assim como é trabalhar com qualquer criança, porque todas elas trazem repertórios diferentes e têm modos distintos de aprendizagem. Aliás, as evidências mostram que interações significativas com colegas de desenvolvimento típico, oferecem às crianças atípicas, benefícios sociais e intelectuais importantes, ao mesmo tempo em que estes também se beneficiam desta interação, aprendendo a conviver e a respeitar as diferenças.
Neste sentido, é importante uma conversa franca com os familiares, estabelecer um canal de comunicação, que fique sempre aberto, no intuito de melhor compreender o papel da comunidade em relação à família e à criança. A Igreja pode ser muito cuidadora quando pensa nestas questões. Exemplifico com uma experiência real:
João, menino de quatro anos, membro de uma comunidade luterana e filho de pai e mãe que exercem liderança na comunidade, recebeu o diagnóstico de autismo. Ele não fala, tem dificuldades de socialização e apresenta comportamentos repetitivos, ecolalia e irritação. Mas, ele adora estar no culto, especialmente quando a comunidade canta. Além disso, se posta ao lado do pastor durante as celebrações porque gosta dele e se sente bem ao seu lado. O pastor, sabendo que existiam rumores acerca do comportamento do João e de como ele estaria prejudicando o bom andamento do culto, além da existência de recriminações ao pai e à mãe que não davam um jeito de “aquietar” a criança, em certo momento da celebração, abraçou o menino e disse para a comunidade: “nós estamos acolhendo uma família que tem uma criança com diagnóstico de autismo; esse menino ama estar no culto e adora as músicas que nós cantamos para Deus. A inclusão desta criança e desta família é uma tarefa de todos nós”. A partir daí as coisas mudaram e o João e sua família passaram a receber outro tratamento, outro tipo de cuidado, foram abraçados por toda a comunidade.
Portanto, a igreja está sendo inserida dentro de uma realidade que exigirá dela, mais uma vez, as ações de misericórdia, como resposta de fé a tudo o que Deus fez. A Igreja primitiva foi um exemplo disto. O livro de Atos (Atos 2 e 6), relata a forma como a comunidade se reunia e como ela se preocupava em formar redes de apoio para ajudar as pessoas em sofrimento, resgatando essas pessoas para uma vida com Deus. Ou seja, é fundamental que a comunidade cristã olhe para sua tradição e relembre sempre de novo a sua vocação, seguindo, desta forma, o Ministério de Cristo.
Conclusão:
O desafio posto à igreja é o de se abrir definitivamente para a realidade do autismo e outros Transtornos do Desenvolvimento. Isso vai exigir que ministros, ministras, lideranças e a própria comunidade sejam preparadas para o acolhimento e para a convivência, como forma de testemunho do amor de Deus. Não há como se eximir desta tarefa e nem adiá-la. Uma igreja sustentada por Deus, que segue no Ministério de Jesus, o Bom Pastor (João 10), guardiã da voz profética, está sendo chamada a olhar para uma nova realidade. Por enquanto, o caminho é cheio de incertezas, mas como igreja peregrina que somos, também aprenderemos a caminhar com as famílias que vivem e convivem com o autismo (Lc 24. 13-35).
(Pr. Dr. Marcos Augusto Armange)
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